SONHOS DE UM COADJUVANTE

Dizem que o novo assusta. Imaginem um novo com doses de genialidade. Como o elástico de Roberto Rivelino. Os dribles de Mané Garrincha, a bicicleta de Leônidas da Silva. Quantos, então, não se assustaram com o corta luz de Pelé sobre o goleiro uruguaio na Copa do Mundo de 1970, no México? Se o estádio se calou, televisões assombraram torcedores pelo mundo, calculem a emoção dos que vestiam a mesma camisa amarela e presenciaram toda a obra de arte ao seu lado?

Nós, ex-jogadores de futebol, privilegiados coadjuvantes das raras genialidades que por nossos gramados reinaram em décadas passadas, cuja ultima espécime foi o Neymar, às vezes acordamos no meio da noite de um sonho vivido. Teria sido mesmo aquele lance de verdade? Após conferir a jogada  na lembrança, em meio a breve e escura  vigília, e voltar a dormir, prometemos contar dia seguinte para todo mundo. Não seria justo guardar as pérolas que assistimos de camarote, na Sala VIP do futebol, a centímetros da ponta das nossas chuteiras. Esta passagem me fez despertar ontem, domingo, dia de Fla-Flu. Suado e feliz.

Era meu primeiro treino no Flamengo, em Miguel Pereira, onde o clube fazia sua pré-temporada. Quando descia pela esquerda no coletivo, via todo mundo me olhando, esperando lhe conceder o objeto de desejo. Que estava ali rolando aos meus pés. Menos o Zico. Mesmo livre, às vezes, não me olhava. E eu tinha a bola. Estaria olhando pra quem? Daí eu a atrasava para o Júnior, procurava o Geraldo para a tabela ou cruzava na área para o Luizinho. Final do primeiro tempo, Júnior se aproxima. E pergunta:  “Está com raiva das gratificações? Tá rico, não precisa do bicho? Notei que você não meteu uma só bola para o Galo!”. Retruquei: “Mas ele sempre olhava para o outro lado, como lhe passaria a bola?”. Aí o capacete, que há mais tempo convivia com nosso camisa 10, explicou que ao pressentir que receberia um passe, Zico abria seu olhar giroscópio em busca de um repertório maior, para dar seqüência imediata às jogadas. Quando tinha certeza de que, livre, seria acionado, segundos antes já abria o GPS a notar se o Toninho passava apoiando a sua direita, o Tadeu estaria ao seu lado apoiando, Rondinelli, o Deus da Raça, livre mais atrás para reorganizar a saída de bola. Isto quando não partia em direção ao gol ao perceber a zaga adversária desarrumada. Como anteveria tantas opções olhando para quem, como eu, queria lhe passar a bola?

Depois da lição, lembrei da frase sábia de  Neném Prancha: “O bom jogador vê, o craque antevê.” No segundo tempo do treino, mesmo diante do novo, do inusitado, tratei de acioná-lo imediatamente. Aliás, foi o único apartamento que consegui comprar na minha carreira. Se não fossem os conselhos do Júnior, estaria vivendo de aluguel até hoje!

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