Queria
Dizem que jogador de futebol morre duas vezes. Uma quando para, outra quando é esquecido. E a cidade de Três Rios, a quem você concedeu o privilégio de desfilar o seu talento no ultimo clube profissional que defendeu, o Entrerriense FC, recebeu a honra de dizer em nome de todo o país: obrigado, Marinho. Primeiro agradeço por mim: poucas vezes vi de perto um atleta tão completo. Depois de encerrar minha carreira, comecei a atuar na seleção carioca de Master. E você estava lá, no auge dos seus 35 anos, desequilibrando todos os jogos. Você fazia gols de cabeça onde todos já encolhiam a sua, e com penetrações pelas duas pontas, com chutes fortes e precisos e de fora da área. Sua impulsão acima da média, impressionava a todos quando concluía um cruzamento sobre a área. Depois que joguei ao lado de Gérson, em 74, Rivelino em 75, do Zico em 76, achava que minha cota de atuar ao lado de um gênio estava mais que esgotada. Mais ainda tinha você não para garantir o bicho, pois as gratificações eram cotas pagas antes das partidas, mas porque garantia a alegria de continuarmos vencendo. No futebol, mesmo no Master, não há espaço para perdedores. Mas porque razão, pensava depois no fundo dos ônibus que nos trazia de volta com o dinheiro da feira de Mariana, Resende, de São José do Vale do Rio Preto, você, Marinho, atuando daquele jeito, sem nunca ter operado os meniscos, não estava defendendo uma equipe profissional?
Aí o Brito, outro ídolo nosso, encostou ao meu lado e contou porque você era o mais triste de todos os jogadores da nossa seleção, embora para disfarçar se tornara o mais extrovertido. No fundo do ônibus, contava piadas sem parar para que o riso encobrisse uma angústia que os olhos não conseguiam mais esconder. Disse nosso xerife do tricampeonato, que você começou no Galo, defendeu as seleções brasileiras de base e saíra do América de Rio Preto para o Bangú AC. Vice-campeão brasileiro de 85, foi convocado por Telê Santana e atingiu o auge da carreira. Neste ano, ganhou a Bola de Ouro da Revista Placar como o melhor jogador do campeonato brasileiro. Comprou uma mansão na Barra da Tijuca, ganhou uma Mercedes do seu presidente contraventor, Castor de Andrade, e passou a reunir os amigos para os pagodes e churrascos. Como Ronaldinho Gaúcho. Como Adriano. Como sempre acontece, tudo surge muito rápido na ascensão de uma estrela: os carros, os apartamentos, as roupas, os amigos. Principalmente as novas amizades. Elas surgem de todos os lados acompanhando o ritmo vertiginoso do sucesso, e só dá para perceber o quanto são frágeis e falsas quando desaparecem durante a queda. Quando começa a faltar o ar da fama, cala-se a voz da galera, você percebe que o ombro amigo que lhe falta estava ao lado do peito vazio, bolso carente, coração ausente, órgãos e membros que compõe os seres vivos que se aproximam visando rendimento e dividendos dos seus semelhantes. Como o corretor imobiliário de plantão, que todo clube grande tem o seu à espreita se dizendo torcedor, procurador, amigo e fã.
E como toda estrela emergente, você só percebeu isto quando se viu diante de uma tragédia. Quando gravava uma entrevista para a Manchete Esportiva, em meio aquele cenários de refletores acesos, silencio na sala e concentração no que ouvir e responder, seu filho Marlon, de apenas 1 ano e 7 meses, andou até a piscina. De lá, 12 de fevereiro de 1988, só saiu em seus braços sepultando junto uma das mais brilhantes e promissoras carreiras de um jogador de futebol que nosso país foi capaz de revelar. Quando o ciclo da vida se conflita e um pai se despede do filho, nenhum abraço reunirá mais forças para trazer junto ao peito qualquer prazer ao coração. Nós, seus amigos, só podemos imaginar o que passou por sua cabeça. Só imaginar. Porque o que se passou a seguir com sua carreira estava diariamente nas manchetes dos jornais: vendeu a casa, separou-se da mulher, caiu vertiginosamente de produção, perdeu a posição de titular na equipe e foi trocando de clube como se procurasse,dentro de cada um deles, explicação para tudo aquilo. Uma tragédia como a sua expõe mais rapidamente o caráter vazio da nossa profissão. No lugar de receber apoio psicológico e muito carinho, é bom lembrar que você jogava em Bangú, terra da gloriosa Mocidade Independente de Padre Miguel. Lá, no então berço da contravenção carioca, entre o delírio do samba e o êxtase da bola, não havia espaço para cataquese. As paixões eram expressas à flor da pele e elas são instantâneas, envoltas em bebidas, muitas vezes com drogas. Nada de Freud, que é pensador e reflexivo, e tudo de cocaína, que faz efeito rápido e preciso. Não é preciso dizer qual escola, a mesma do Josimar, do Jobson lhe abriu as portas e lhe “amparou” em um momento tão difícil.
Se nós, jogadores de futebol, morremos duas vezes, como dizem, lhe concederam um sepultamento a mais. E nos reunimos esta noite, aqui em Três Rios, para celebrar sua ressurreição. Poucas vezes vi nossa classe tão unida em prol de um ato de justiça. Afinal, não é a conquista do Hexa ou superar traumas de 50 ou de 7×1 que o futebol brasileiro precisa. Cuidar da memória e dar respeito aos seus heróis esquecidos, conceder-lhes aposentadoria, dignidade, amparar-lhes quando mais precisam, deveria ser a missão maior de um país que vira as costas para seus artistas da bola quando deveria se orgulhar de cada Marinho destes que o dignifica a cada dia.
José Roberto Padilha é jornalista, ex-atleta do Fluminense, Flamengo, Santa Cruz e Americano, entre outros.