O RAIO E O REI

Todos nós temos um objeto de estimação em casa. O meu era uma vitrola, que devo traduzir para os mais novos, vem a ser um aparelho eletrônico que tocava disco. E disco foi o pai da fita cassete, avô do CD e bisavô do Pen Drive. O que os aproxima é que todos tocaram Beatles com igual intensidade. Certo dia, caiu um raio perto de casa, as luzes se foram e a minha vitrola se calou para sempre. Sem peças de reposição, virou objeto de decoração.

Nós, brasileiros, adotamos em comum um objeto de estimação. A seleção brasileira de futebol. Desde 1958 que ela nos dá orgulho, eleva a nossa auto-estima, nos faz enfrentar os colonizadores de frente, nos leva às ruas, bandeiras em punho, outras penduradas na janela, a exibir uma nacionalidade como em nenhuma outra solenidade. Ao contrário da minha vitrola e dos seus descendentes tecnológicos, fabricados com peças importadas, nossa seleção sempre foi montada com nossa original matéria prima de exportação: o jogador de futebol.

São meninos mestiços retirados das periferias, cujas mães pouparam o trocado das feiras para levá-los aos testes, e depois de muita luta, mais até que o Bolsa Família, promovem a maior redistribuição de renda do planeta. Tão eficiente a transferência que nem precisam impor sistema de cotas, já que os que procuram oriundos da classe média, dos colégios particulares, não jogam descalços, preferem o videogame ao campinho de terra batida, não passam de filhos do Bebeto. Quem tem outra chance fora das quatro linhas, estuda, vira modelo, artista, mas sem o pulo do gato da superação, da única opção na vida colocada à sua disposição, vão para as arquibancadas aplaudir os Thiago Silva que ralaram, sobreviveram e venceram.

Bem, na ultima terça-feira um raio caiu sobre nosso objeto de desejo coletivo. Quem cuidava dele pra gente, no lugar de tirá-lo da tomada a proteger o nosso meio campo, o expôs ligado numa frágil voltagem 4-2-4. E ele quebrou e ficamos 6 minutos sem energia. Levamos ao conserto, pois tinha um novo programa no sábado, e encontramos duas opções: a primeira aceitar que há poucas peças no banco para religá-la, afinal, foram 7 lugares atingidos e apenas um preservado. Deixá-lo de lado. A outra, injetar em seu interior doses de confiança. Levantar seu astral ao reconhecer que, em 5 apresentações e 450 minutos de exibição, sua sinfonia mudou a cara do país, criou novos heróis, se uniu em torno do seu menino machucado, inverteu para exemplo de civilidade, hospitalidade, o caos que todos imaginaram para o país. Serão justos 6 minutos de apagão apagar uma luz tão radiante?

Foi apenas um raio. Ele não pode calar a voz do país que mais entendeu os rumos de uma bola de futebol. Que mais venceu. Se enfrentarmos 31 candidatos num concurso público e alcançarmos o terceiro ou quarto lugar, saímos pelas ruas a comemorar. Mas se disputamos no sábado tal privilégio, como entender a soberba de muitos que só esperam da gente o primeiro lugar? Será que nossos adversários não têm o direito de vencer também? Nem o Deus Brasileiro permitiria tanta presunção e egoísmo.

Sem um Rei a nos defender, o qual procurei nas tribunas de honra, na ESPN, na Fox, na resenha da Bandeirantes e nem ao lado do Galvão o encontrei, tomo a liberdade, como súdito, de pedir ao nosso povo que volte às ruas no sábado para defender nosso valioso objeto de estimação. Ele é montado por seres humanos, sujeitos a pane e ao perdão. Até criminosos que não são presos em flagrante tem direito a atenuantes que diminuam a sua pena. Outros, já condenados, podem responder em liberdade. Em nome de todos nós, eu os perdôo. E vestirei minha camisa amarela, darei corda na vitrola da vida e sairei, com qualquer resultado, por aí a cantar: “Prá frente Brasil, Salve a Seleção!”.

José Roberto Padilha é jornalista, ex-atleta do Fluminense, Flamengo, Santa Cruz e Americano, entre outros.

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