O DIREITO DE SERMOS LIVRES DO MEDO

Siro Darlan*

Em janeiro de 1941, o presidente dos EUA era Franklin Delano Roosevelt. A II Guerra só o tragaria com o ataque a Pearl Harbor, no dia 7 de dezembro daquele mesmo ano. Não obstante, como compete a um estadista, FDR sabia de antemão o que lhe reservava o futuro e proferiu, naquele janeiro, um de seus mais famosos discursos, perante o Congresso Americano: “The Four Freedoms” (As Quatro Liberdades).

Roosevelt alertava para a necessidade de que a nação estivesse preparada para os futuros combates e ciente cada um de suas responsabilidades, a começar pelos homens públicos.

 

A certa altura de seu pronunciamento, o presidente explica que “As coisas básicas esperadas por nosso povo de seus sistemas político e econômico são simples: oportunidades iguais para jovens e outros, emprego para os que estejam aptos a trabalhar, segurança para os que dela necessitem, o fim dos privilégios especiais de poucos, a preservação das liberdades civis para todos”.

 

A isso, acrescentou: “Nos dias futuros, cuja segurança buscamos, antecipamos um mundo fundado sobre quatro liberdades humanas essenciais … de opinião e de expressão …. de cada pessoa cultuar Deus à sua própria maneira … de arbítrio …. e do medo…”. Relendo essas palavras ditas por Roosevelt às portas do maior enfrentamento bélico que nosso mundo já assistiu, paro para refletir na sua aplicabilidade para o Brasil de hoje, especialmente no Rio de Janeiro, Estado onde um terremoto moral, com epicentro em São Gonçalo, continua a reverberar nas mentes de todas as pessoas de bem.

 

Olho para um lado e vejo a patifaria da representação política. Para outro – e lá se encontra o reinado das castas atracadas como sanguessugas ao que deveria ser “res publica”. Mais além, a impunidade passeando por bondes homicidas de um estado desgovernado; em brinquedos que dardejam a morte à deriva nos parques de diversão, numa cidade onde os fiscais só atuam de brincadeira; nas saias parlamentares em que o movimento sempre-livre da corrupção absorve a gosma que se derrama dessa gente imunda.

 

Por fim, observo a todo redor a terra de meu país, encharcada com o sangue derramado por Patrícia Acioli, Leopoldo Marques do Amaral (juiz do MT, assassinado em 1999), Antonio José Machado Dias (magistrado paulista, morto em 2003), Alexandre Martins de Castro Filho (juiz do ES, morto em 2003), Fabrício Ramos Couto (promotor no PA, abatido a tiros em 1996), Manoel Alves Pessoa Neto (promotor do RN cuja morte foi encomendada pelo juiz da comarca em que servia, no ano de 1997), Francisco José Lins do Rego Santos (promotor em MG, eliminado pela máfia dos combustíveis em 2002), João Alves da Costa Neto (promotor assassinado em AL, por estar alcançando os mandantes de diversos assassinatos naquele estado), Valdir de Freitas Dantas (promotor do SE, chacinado em 1998), Divino Marues de Melo Amorim (promotor de GO, morto em 2004), Marcelo Dario Muñoz Küfner (promotor do RS, assassinado em 2004), Rossini Alves Couto (promotor em PE, morto em 2006), Fernando Martins (promotor do CE, assassinado em 2004), dentre tantos outros advogados, defensores públicos, ativistas, religiosos, representantes de sindicatos e uma interminável lista de gente de bem vitimada por um Poder Público nulo ou que, quando atua, se põe a serviço do oponente.

 

Fecho os olhos e assim estou seguro que percebo mais coisas ao meu redor do que qualquer autoridade que esteja inutilmente a procurar os matadores de Patrícia pelo último mês ou a não investigar os que a deixaram morrer sem proteção alguma. A estes últimos conheço logo pelo mau-cheiro que exalam seus obscuros costumes: são os mesmos que manipulam concursos, que se associam a bancas de advocacia, que viajam nas asas da CBF, que atendem aos convescotes de lobistas regados a vinho de boa cepa e negócios escusos, que fazem o jogo de salão das promoções na carreira em troca de favores, que possuem, por assim dizer, uma visão algo peculiar do que seja honrar as vestes que os cobrem, a troco de uns cobres.

 

Feridas físicas curam; não as do espírito. O de Patrícia jamais irá se recuperar das 21 perfurações de desonra que sofreu por defender um Estado Democrático de Direito que, bem vejo agora, só existia em sua utópica cabeça, porque esse que aí está pode ser chamado de qualquer coisa, menos de Estado, menos ainda de Democrático e sob hipótese alguma de Direito. É nada mais do que um estado de coisas. Péssimo, por sinal.

É por isso que, da mesma maneira, nossa sociedade não encontrará a cura das feridas que leva latejantes em seu seio, em razão da morte de Patrícia Acioli, enquanto não ressuscitar civicamente, milagre que só a apuração de toda a verdade no caso – sem exceção – e tonéis de creolina ética poderão proporcionar. Nessa tarefa, não esqueçamos de pulverizar bem a cabeça oca da Associação de Magistrados do Estado do Rio de Janeiro, que pode ir buscar serenidade num momento como esse em vários lugares, cujo decoro me impede de declinar neste espaço, menos numa realidade conflagrada, que exige atitudes firmes, rápidas e duras.

 

Já são trinta os dias de inépcia e irresponsabilidade, com estampidos episódicos de pirotecnica a fazer eco com as balas da PM usadas para eliminar a juíza Patrícia Acioli. Cada um desses dias que passa sem que nada de palpável venha a lume rasga mais fundo as carnes de nosso tecido institucional. Até quando suportaremos?

 

Agora que o atentado às Torres Gêmeas faz 10 anos, percebo com clareza que nosso 11 de setembro foi no último 11 de agosto; Patrícia, a mártir; o terrorismo: de Estado. Que algo realmente esteja se movendo no espírito civil de nosso povo (como supõe Merval Pereira) a curá-lo dessa letargia e da amnésia que o fez esquecer o que seja patriotismo irresignado.

Às ruas, cidadãos! Para vivermos livres do medo!

Siro Darlan

*Siro Darlan é Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

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