O CORAÇÃO DE TREINADOR

 Sabia que algum momento ele não iria resistir. Nenhuma outra profissão é tão ingrata como a minha: para vencer e permanecer empregado é preciso que pés alheios, cabeçadas precisas, tiros certeiros e defesas importantes realizadas por terceiros estejam inspiradas todas as quartas após as novelas, aos sábados em Brasília, domingo no Maracanã porque fecharam o nosso mando de campo, o Engenhão, e onde mais este calendário desumano nos levar brasileirão afora. 

Desde janeiro tenho treinado o meu time, ensaiado jogadas, realizado preleções, me concentrando em hotéis todas as semanas para ser o melhor dos cariocas. Como Tarzan, tenho deixado minha Jane em casa e vou dormir ao lado de jacarés que roncam, leões que ligam tevês em altas horas, cobras interinas que vivem a cobiçar o meu lugar. Mesmo ganhando o estadual, tenho que passar por provações contínuas quando vendem o Vitinho (mas logo o Vitinho!) para pagar os salários atrasados.

Por agonias quando o Seedorf perde um penalty contra o Cruzeiro (mas logo contra o Cruzeiro!), o Renato machuca junto com o Gabriel, o Dória não pode jogar e não tenho outra saída que não seja escalar André Bahia na zaga. Poucas são as profissões tão perigosas (talvez os domadores de tigres, um policial carioca que suba a pacificar uma favela) quanto aquela que depende de um André Bahia como a ultima trincheira para a manutenção do seu emprego.

Sou treinador de futebol. E do Botafogo. Vocês sabem, tem coisas que só acontecem com o Botafogo. Imaginem o que acontece com o coração de um treinador de futebol. Do Botafogo. Quando trouxe o Rafael Marques e apostei nele abrindo mão do Loko Abreu e do Herrera, comprei todas as brigas por um centroavante que não acertava um passe. Rafael era um protótipo de atacante que apresentei ao exigente cenário esportivo nacional que não conseguia ultrapassar nem o Rubinho, mesmo que o Box ordenasse pelo rádio tal inversão.

Insisti com ele, falaram que tava levando algum na jogada, que era seu empresário, mas depois de dez partidas ele acertou o carro, porém, o meu motor já começava a ratear. Às vezes a tevê nos mostra ali à beira de um gramado com ares de tranqüilidade, de completo domínio sobre a partida, mas na verdade estamos de verdade à beira de um ataque de nervos. Ricardo Gomes, meu colega, que o diga.

Porque estudar, eu estudei. E muito. Leio bastante. Pouco importa, quando perdemos, desço aquelas escadas chamado de burro. E não há coração no mundo que não se magoe quando nos preparamos na vida para ser uma águia, ter o saber da coruja, a inteligência de um primata e um coro uníssono dá o veredito final, em altos brados, ecoados para todo o país e seu família junto reunida na sala: “Seu burro!” Levo em consideração que estou no futebol, onde xingam a mãe do árbitro sem conhecer seu passado de luta, vaiam até minuto de silêncio, mas chega um momento em que ele, coração, não resiste. 

E este dia é quando você perde uma partida pro Renato Gaúcho. Perder pro Marcelo Oliveira, para o Wanderley, o Abel Braga, tudo bem. São sofredores e dependentes do talento alheio para sobreviver como eu. Mas para o debochado do Renato Gaúcho, não suportei. Renato foi um maravilhoso jogador de futebol. Mas levou, como treinador, para a beira do campo um ar único de deboche que, na derrota para o Grêmio, transcendeu o domínio que escondia sobre minhas já abaladas estruturas. 

Liberados pelos médicos, vou permanecer em casa descansando. Continuar lendo ao lado da Jane, revendo conceitos, saber se vale a pena descer outra vez para aquela selva, tão desumana que um burro é capaz de sucumbir, ser internado na UTI, acometido por um riso cruel e sarcástico de uma hiena que só o futebol é capaz de preservar. E que o meu Botafogo não teve a competência de domar.

José Roberto Padilha é jornalista, ex-atleta do Fluminense, Flamengo, Santa Cruz e Americano, entre outros.

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