Testemunha do Maracanazo não verá outra final

06/06/2014

Poucas pessoas tinham tantos motivos para estar no Maracanã no dia 16 de julho de 1950 quanto Maria Celia Pinto.  Naquele domingo sua rotina não foi modificada, mesmo com a mobilização total do país, que parou para comemorar o primeiro título de campeão mundial de futebol. O estádio monumental, maior do mundo, foi construído para aquele momento, aquela decisão. A taça Jules Rimet estava em casa e permaneceria aqui nos próximos quatro anos, como mandava o regulamento. Tudo pronto, bastava só rolar a bola e comemorar. Mas não foi bem assim. A jovem Célia estava lá para ver o marido jogar. Entre Friaça, Zizinho, Ademir e Chico, Jair Rosa Pinto não tinha certeza se ela estava presente ao “maracanazo”  a maior derrota da seleção brasileira em todos os tempos. 

A SENHORA ESTÁ LIGADA NA COPA DO MUNDO ?

– Não muito, ahahahah

EM 1950 COMO ESTAVA ?

– Torcendo, né, para que vencesse, mas não foi possível

QUAL ERA O CLIMA ANTES DA DECISÃO ?

– A gente morava em São Paulo. Eu não tinha nenhum dos dois meninos. Eu sei que fiquei em casa de mamãe e ele ficava na concentração. A gente passou um período em Poços de Caldas, foram as famílias, só que a gente dormia em quartos separados (ahahahah). A gente se via durante o dia, nos intervalos dos treinos mas à noite eles iam para quartos separados.

ALGUMA LEMBRANÇA DESSE PERÍODO DE CONCENTRAÇÃO ?

– Eu me dava muito com a mulher do Barbosa, a gente conversava bastante

A SENHORA SEMPRE GOSTOU DE FUTEBOL ?

– Sempre gostei, alguns parentes eram lá do Madureira, dirigentes. Aliás, antes era Fidalgo, depois virou Madureira.

SE CONHECERAM NO CLUBE ?

Sim. Eu morava assim (mostra na mesa) e o campo do Madureira era aqui, encostado. Então, ele passava para ir ao clube, que eu já frequentava, antes dele. Nós íamos aos jogos, umas amigas. Meu time era bom. Tinha o Charuto, o Alfredo, irmão de um jogador de basquete do Flamengo, tinha um de Campo Grande, casado com a irmã do Decio Esteves, tinha o Tuíca, Gringo, o Esquerdinha, o Murilo, to dizendo, o time era muito bom. Quando inaugurou o estádio ganhou do Flamengo, do Vasco, acho que do Fluminense também.

QUEM AZAROU PRIMEIRO ?

– Ele passava sempre com o Aniceto (Moscoso, presidente, que dá nome ao estádio), nossas famílias se conheciam, meu irmão era muito amigo do filho dele, mas “ninguém” queria se aproximar, naquele tempo as famílias faziam restrições, hoje não, até empurram as mulheres, jogadores eram considerados vagabundos, não trabalhavam.

SABIA QUE ELE ERA JOGADOR ?

Não, a primeira vez que ele passou estava com Aniceto e houve uma conversa mais longa, com a família. Aniceto apresentou “esse é o nosso novo jogador”. Minha mãe disse “mas ele é um garoto”, mas a coisa foi indo, mas a família era contra, a gente namorava escondido. Isso em 1939.

QUANTO TEMPO DEMOROU ESSA SITUAÇÃO ?

A gente foi levando e um dia ele resolveu casar e foi lá em casa, num Natal. Quando ele falou minha mãe disse que não. Ele não ficou quieto, estava resolvido e falou “já que vocês não querem, nós vamos casar assim mesmo. Amanhã vou começar a arrumar os papéis”. Minha tia, que morava com a gente interveio , contornou a situação e chegamos a um acordo. Nós casamos em dezoito dias. Foi só o tempo de arrumar os documentos. Casamos em 1945.

COMO FOI DURANTE A COPA ?

Eu vim para o Rio, ele estava jogando no Palmeiras, quando  foi convocado. Fiquei na casa da minha mãe, no Grajaú, com a minha tia, essa que “ajudou” naquele período do namoro

JAIR SE PREOCUPAVA SE SERIA CONVOCADO ?

– Não, ele não gostava de misturar as coisas, falava muito pouco sobre futebol, que era seu trabalho, não queria envolver a família, sempre falava isso, quando falava, gostava mesmo é de ficar calado. Não conversava muito.

casaco que Jair usou na copa de 1950

VIU TODOS OS JOGOS ?

– Não, só fui o que perdeu, nos outros eu não fui. Ele levava entradas mas eu não fui, não sei porque. Eu podia ir com uma amiga que ia sempre aos jogos mas não fui, só no ultimo. Eu não me ligava muito na seleção, nem no Vasco eu fui, quando eles concentraram la.

COMO FOI DIA DA FINAL ?

– Fui com o Candinho, meu tio, só fomos nós dois. Morava em São Paulo, mas estava em Madureira, na casa da minha mãe, com o motorista que levava a gente. Ele me deixou na porta, encontrei com o Jair e fui para o meu lugar e o motorista ficou esperando a gente lá fora

LEMBRA ONDE FICOU ?

– Ficamos mais em cima, nas cadeiras especiais, muita gente, mas não sei exatamente onde era, mas estava tranquila, mesmo com todo aquele movimento. Eu não ficava nervosa vendo jogos, nem aquele da final.

E NA SAÍDA ?

– Nos encontramos, sem falar nada, fomos de taxi pra Madureira, com esse chofer que fazia serviço pra gente, pra casa.

O QUE O JAIR DISSE DEPOIS DA FINAL DE 50 ?

– Estava tudo certo !!!

O JOGO ESTAVA ARRANJADO ?

– Não, estava tudo pronto para as comemorações.

QUEM DISSE ISSO AOS JOGADORES ?

– Os dirigentes, aquele pessoal que invadiu a concentração.

ELE FALOU SOBRE A DERROTA ?

– Não, nada, ele não comentava nada, era muito enjoado, não gostava de badalação

E A VOLTA ?

– Mudo, ele não falava, conseguia ver jogo na televisão sem falar nada.

NÃO COMENTOU O JOGO ?

– Ele só disse assim pra mim, se nós tivéssemos ganho você não ia me ver tão cedo. Que já estava tudo pronto, tudo arrumado.

NUNCA COMENTOU NADA SOBRE AQUELA SELEÇÃO ?

– Nada, nada. Quando eu perguntava alguma coisa ele dizia que não misturava as coisas, o futebol e a família.

QUANTO TEMPO DUROU O LUTO PELA DERROTA ?

– Nós ainda ficamos uns dias lá em Madureira. Meu tio tinha uma farmácia e o Jair costumava ficar conversando com ele, passando o tempo. Ficamos alguns dias depois voltamos para São Paulo.

E A VIDA CONTINUOU

– É, mas tinha um pessoal muito antipático, falavam muito mal do Rio, eu não gostava daquilo.

QUEM ERA O MELHOR AMIGO DO JAIR ?

– Ele era muito chato, fechado, calado, mas conversava mais com o ChicoA SENHORA CONHECEU O BARBOSA ?

– Conheci, eu me dava muito com a mulher dele, a Clotildes, Lá em Poços de Caldas, quando a seleção concentrou, a gente andava sempre juntas.

JAIR GOSTAVA DE JORNALISTA ?

– Não, nem um pouco. Dizia  “eu falo uma coisa vocês botam outra”, e desviava sempre que podia.

JAIR FOI CONVOCADO PELO MADUREIRA ?

– Não, aí ele já estava no Vasco, ah, mas eu tinha uma raiva do Vasco que Deus me livre, eu não suportava o Vasco. Eu sempre fui Madureira, até hoje, o pessoal lá em baixo  fala isso até hoje. Mas quando casamos, ele chegava em casa domingo, depois dos jogos, ficava segunda e terça, na quarta saía para treinar e ficava até o dia do jogo. A gente casado de novo, já viu, né ?

AINDA TEM RAIVA DO VASCO ?

– Outro dia eu estava pensando assim “o Vasco não tem culpa ” a culpa era do Ondino Vieira (técnico ) que levava ele para a concentração de quarta, almoçava em casa, a domingo, depois do jogo. Eu tinha muita raiva mesmo, e na casa dele, lá em Barra Mansa, a parede era só Vasco, fotos, faixas. 

CLUBE GRANDE VIDA NOVA ?

– Não, a gente continuou morando em Madureira, na minha casa. Só mudamos depois que ele foi para o Flamengo, a gente morava no Leblon, bem perto, era só atravessar a rua. 

VIROU RUBRO-NEGRA ?

Não, continuei e sou até hoje Madureira. Eu só tinha raiva mesmo do Vasco, por causa do Ondino

QUE LEMBRANÇA A SENHORA TEM DO FLAMENGO ?

– Acabei ficando com raiva também, por causa do Ari Barroso, que inventou uma porção de mentiras. Um dia ele chegou em casa e me disse “eu recebi uma proposta de São Paulo, se eu aceitar você vai ? ” Claro, eu tinha que ir com ele, a gente estava casado. Ele me disse que era só por um ano. Ficamos quinze.

VALEU A PENA ?

Sim, ficamos por lá, nasceram os “meninos”, a vida continuou.

COMO FOI NO SANTOS DE PELÉ

– Pelé ia muito lá em casa porque o Jair não concentrava e o pessoal passava lá em casa para buscá-lo e ficavam conversando, tomavam café. Toda véspera de jogo era assim, mas o Pelé era muito menino.

HOUVE CONVITE DA ALEMANHA ?

– Sim, apareceu um alemão que vivia insistindo para levá-lo,  mas ele não queria ir de jeito nenhum. Eu insistia “vamos véio”, doida prá ir, “vamos passear, conhecer outros lugares” mas não havia jeito de mudar sua cabeça e acabamos ficando. Mais de uma vez ele esteve lá em casa, os meninos ainda não haviam nascido mas não teve jeito.

A SENHORA FARIA OUTRA COPA AQUI ?

– Eu não, falta tudo aí, o pessoal quebrando os ônibus.

EM 50 TAMBÉM RECLAMARAM ?

– Não lembro disso.

HOJE A SENHORA VÊ FUTEBOL ?

– Muito difícil, vejo alguma coisa na televisão, às vezes um joguinho, à noite.

CONTINUOU SEM IR AOS JOGOS ?

– Ia muito pouco, acho que só fui uma vez a um jogo do Flamengo, la na Gávea, do Vasco nunca fui, que eu me lembre.

POR QUE ISSO ?

– Não sei, mas lembro uma vez que fui com uma amiga, sem o Jair saber. Compramos ingresso de arquibancada, no Pacaembu.

CONHECE A SELEÇÃO ATUAL ?

– Eu comento com a Mariana (neta)  sobre alguns jogadores, quando falam muito dele, não gosto e não sei porque a imprensa fala tanto, é o que se escuta mais. Falam muito do Neymar, hoje só dá Neymar, deve ser o melhor, mas antigamente tinha muito mais jogadores de qualidade, hoje você não vê. Difícil encontrar um jogador que jogue bem.

Dona Célia poderia ter um grito preso na garganta há 64 anos. Mas não faz esse tipo, mesmo tendo sofrido, na pele, o drama daquela final contra o Uruguai. Uma parte de sua vida estava em campo, tentando o improvável, para uns, o garantido, para toda uma nação. Nem assim muda sua rotina. Se quer ver mais uma final de copa do mundo, foi bem objetiva.

– Não, muito obrigado. Até porque a gente não sabe quem será.

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