Beatriz
Bia, ao lado das suas 23 companheiras selecionadas para o alto rendimento entre as 620 integrantes do projeto de ginástica artística, se apresentava para treinar toda segunda feira. Era, segundo elas, o dia em que deixavam a boneca, o Tablet e a tabuada para enfrentar o mais árduo treinamento que já presenciei, entre todos os esportes que conheci. Pela manhã e á tarde, após a escola, no mínimo faziam 1000 abdominais, duzentos saltos e evoluções sobre uma trave cuja superfície não é maior que um palmo. Palmo de gente de pés e mãos pequenas como todas. Terça, segundo a cartilha da tribo, era o dia da dor. Na quarta, dividiam o fisioterapeuta com seus treinadores, aplicando gelo antes e depois e na quinta eram entregues aos massagistas porque suas mãos sangravam de tanto voar e pousar nas barras paralelas. Se as protegessem, perdiam o tato, só ele que parava um corpo que acelerava e estacionava seguidamente em alta velocidade. Na sexta-feira as dores se misturavam a esperança porque, véspera de sábado, a lembrança da Van estacionando e as levando para o Rio de Janeiro era todo o bálsamo que precisavam. E a Bia, por ser trirriense, passava o fim de semana com o gelo nas articulações anestesiando também seus sonhos de sair com suas amigas. Namorados? Nem pensar, não havia tempo. Com o ciclo hormonal interrompido perante tantos ossos em atrito e taxas de gordura abaixo de zero, Modess foi uma inalcançável conquista de um corpo nem SempreLivre durante a buscar para se manter em total equilíbrio. Em alto rendimento. Com esperanças olímpicas. A menina mulher estaciona, a atleta segue treinando. Segundo nossa precursora e símbolo, a Luisa Parente, quando elas param tudo se recompõe. Mas quanto as calcificações, artroses herdadas e a acne que não conheceu?
O sacrifício é tamanho que não tomam sorvete. Hambúrguer é proibido, pizza nem pensar. Quando um coquetel nos foi servido durante a inauguração da filial da Neobus, em Três Rios, e toda a ginástica se fez presente na esperança de alcançar um patrocínio, deu dó ver seus pequenos olhinhos brilhando diante de salgadinhos e quitutes quentinhos que estavam proibidas de tocar. E em meio a alfaces no almoço, brócolis com cenoura no jantar e adolescência interrompida, Bia jogou a tolha. Se o preço de um pódio era atirar a parte mais bonita de sua vida em constantes sacrifícios, ter as articulações comprometidas, achou melhor ter sua vida de volta.
Será que foi com estes objetivos que a Grécia criou os jogos olímpicos? Certamente que não. A chama olímpica foi acesa há milhares de anos para que a paz iluminasse gregos, troianos e toda a humanidade para que os valores do esporte superassem as guerras. Competições no lugar das batalhas. Bolas no lugar de balas de canhão, alvos de papel no lugar de corações. Os jogos olímpicos não foram criados para que as nações sedes sacrificassem meia dúzia de atletas, como Londres o fez, para fazer bonito apenas naquele momento, ganhar medalhas ilusórias a encobrir a falta de políticas públicas que massifiquem o esporte. Dando oportunidade a todos, desde a escola, não sacrificando alguns para iludir o mundo. Por quê não repassam a cada secretaria de esporte 5% da sua receita para que, com os 25% da educação, 15% da saúde, completem a formação de cada cidadão?
Bia resolveu estudar. Em pouco tempo seus centímetros e a puberdade, livre da pressão, afloraram e recuperou parte da adolescência perdida. Passamos por ela outro dia caminhando no calçadão e estava bonita e feliz. Durante as olimpíadas estará do outro lado da telinha torcendo por suas companheiras, meninas heroínas como a Flavinha, a Rebeca e a Jade que ainda se superam, comem verduras e se sacrificam para serem esperança de uma outra nação esportiva. Quando chorarem no pódio, ficará entre nós a dúvida: foi de emoção, alívio ou de dor?
José Roberto Padilha é jornalista, ex-atleta do Fluminense, Flamengo, Santa Cruz e Americano, entre outros.