ADEUS

Li, outro dia, que o auge do homem ocorre quando ele reúne todos os seus experimentos, acresce o equilíbrio das relações e atuações físicas e intelectuais e bate no liquidificador da capacidade o néctar da plenitude. Este será servido à sociedade que o respeita e merece. Na minha função social, ala ou lateral direito em defesa de uma nação, significa, após 517 partidas, realizar a cobertura do meu zagueiro central (caso ela, bola, ultrapasse a pequena área, quem a receber terá um ângulo menor para sua conclusão), cadenciar as subidas ao ataque (ir somente na boa, ser um fator surpresa, não uma mesmice prevista a ser marcada) e realizar um passe na cabeça do centro avante após chegar a linha de fundo (não mais cruzar sobre a área, a esmo, mesmo porque se a zaga adversária interceptar o cruzamento tenho que recompor a minha, em velocidade). De posse da braçadeira, respeitar o juiz, os adversários, quem pagou o ingresso lá em cima. Só agora, aos 36 anos me sinto pronto, sabido, ter reunido todas as qualidades para ser um dos maiores laterais do Brasil.

Mas quando atingi o auge, me preparei para ser reconhecido e convocado para a seleção brasileira,  nossa cultura esportiva, por unanimidade, sem que uma só voz protestasse, das cabines de impressa, colunas de jornais ou arquibancadas, entendeu que me encontro ultrapassado para a profissão. Meus dirigentes me ofereceram não um aumento, mas um salário-previdência que só vale até o término do estadual. E vão, no domingo, realizar meu jogo de despedida.

Há dois anos, o estadual carioca tinha no seu meio campo Seedorf, Deco, Juninho Pernambucano, Renato Abreu e Felipe. Era arte pura que enchia de talento nossos clássicos, dando razão àqueles que o reputam o mais charmoso campeonato de futebol do mundo. Aí  um complô os aposentou por unanimidade. Ano passado, ocuparam aquela faixa seus substitutos, Gegê, Guinazú, Pedro Quem, Márcio Araújo e até o filho do Abel andou se exibindo por ali. Sumiram os espectadores, caiu a arrecadação, ninguém chegou à Libertadores e o Botafogo ainda caiu para a segunda divisão.Será que ainda não sabem o porquê?

Estou indo, no auge de minha forma, para os Estados Unidos. Por lá, há uma vocação em perpetuar o belo, não o aspirante a belo. Broadway, Carneggie Hall, o United Center, todos os palcos estendem seu tapete vermelho para o talento, não para a idade. Se o Premio Nobel é entregue às maiores sumidades do mundo e a média de seus ganhadores é de 67 anos, porque será que insistem em aposentar a arte que pratico, quando mais dela domino, aos 36 anos? Porque não o fazem como a Itália, que respeita o Pirlo, Totti, Buffon, Del Pierro e soube plaudir de pé as últimas pinceladas de arte de Roberto Baggio?

Ainda bem que, ao contrário de muitos companheiros, ainda há quem lá fora me acolha e respeite. Muitos deles são atirados ao mercado de trabalho que nenhum legislador ou cartola os preparou para enfrentar. E por lá precisam sobreviver sem um só ano de periculosidade a descontar, mesmo com a chuteira passando rente ao nosso fêmur, as cabeçadas por um triz diante dos nossos miolos. Mas existem lesões que nunca são cicatrizadas. Esta pancada de ostracismo, de ingratidão e falta de reconhecimento que acabo de receber, não há gelo ou Gelol que cure. Só o tempo. Adeus.

José Roberto Padilha é jornalista, ex-atleta do Fluminense, Flamengo, Santa Cruz e Americano, entre outros.

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