DIGA AO POVO QUE FICA

Para se tornar o Rei da Espanha, a Juan Carlos bastou ser neto de Afonso XIII e descendente de Feilipe VI. Já na Inglaterra, por ser uma questão de linhagem, o Príncipe Charles apenas aguarda a renúncia ou morte da Rainha Elizabeth para herdar o trono. Mas para você se tornar um Rei, Edson Arantes do Nascimento, foi bem mais complicado. Seus Afonsos vieram acorrentados em navios negreiros e aqui desembarcaram nas senzalas, em tapetes avermelhados de sangue, onde foram escravizados. Seus Filipes eram conhecidos como Zumbis, em um reinado dos Palmares, onde foram perseguidos e aniquilados até a morte. Mesmo assim, a força da sua raça ergueu um país embarcando o Pau Brasil, plantando o Café, cultivando o arroz. Os caminhos que lhe ofereceram mesmo após a abolição, tinham tudo para lhe elevar a pouca coisa. Jamais levá-lo a lugar nenhum.

Mas foi aí, no meio desta história da formação de um país em que os índios eram dizimados e portugueses, franceses e holandeses se sucediam saqueando nossas riquezas, que dois brasileiros, Charles Miller e Oscar Cox, importaram da Inglaterra um esporte novo para ser jogado no quintal da tradicional família Guinle. No campo do Fluminense FC, ao lado do Palácio Laranjeiras. Era para a alta sociedade se divertir, mas outras traves menos nobres, como o bambu, demarcaram gols no lugar do cedro. Campinhos de terra batida foram erguidos país afora e vocês, negros, construíram com enxadas, aos pés dos morros, no lugar mais barato da periferia, um espaço de resistência, onde alcançariam a igualdade. Para os filhos da nobreza, a bola corria macia na grama esmeralda e os meninos mimados jogavam com meias de linho, debaixo das chuteiras, para não dar bolhas nos pés que mais tarde iriam bailar no Copacabana Palace. Com os pés descalços, campos irregulares e desnivelados, bolas de meia, de borracha, para lá de vivas, vocês criaram um arcabouço de recursos e equilíbrio, força e habilidade ao objeto a ser domado, que nenhum outro branco, em todo mundo, jamais alcançou.

Na década de 60, quando você chegou ao Santos, meninos negros como você eram brinquedos de menino branco. Suas mães eram domésticas, babás, seus pais apenas chegavam a motoristas. Dentro e fora do campo, o negro era um objeto animado, quase mudo. Sem histórias, sem desejos, sem o eu, uma palavra. A televisão em cores chegava ao país, mas sua realidade continuava sendo exibida mais para branco do que para o preto. Você não tinha o cetro. Mas tinha uma bola. E quando a lhe passavam, você partia do meio campo liquidando desigualdades. Enquanto o Brasil procurava um modelo para sua nacionalidade ser reconhecida mundo afora, e tentou com Jorge Amado, Guimarães Rosa, Martha Rocha e a Bossa Nova, você, ao lado do Didi, do Nilton Santos e do Garrincha, colocavam o mundo literalmente aos nossos pés. Com sua classe, dentro das regras estabelecidas, rigorosamente dentro da lei, ocuparam territórios, derrotando suíços, thecos, russos com uma arte única. Magistral. Campeões mundiais de futebol.

Nenhuma outra nação teve um Rei emergido das classes menos favorecidos. Nenhum outro Rei, sem usar da violência, retornou de uma missão carregado nos ombros por sua gente e conduzido ao mais justo dos reinados. Sendo assim, melhor deixar esta CTI e dizer ao povo que fica. Fica para que as cotas sejam respeitadas até que os respeitem. Fica para continuar símbolo de um país que elegeu o futebol, e não a violência, como uma forma pacífica de conquistar o mundo. Nada de urânio enriquecido em uma bomba atômica, apenas uma bola

carinhosamente lançada sobre uma barreira humana e explodindo nas redes adversárias. Fica porque você é o nosso Rei. E palavra de Rei não faz um país voltar atrás em humilhações e injustiças parcialmente superadas. Pois se diminuímos a desigualdade social, a racial há de precisar de seu cetro, exemplo e majestade.

José Roberto Padilha é jornalista, ex-atleta do Fluminense, Flamengo, Santa Cruz e Americano, entre outros.

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