OS TONS DA CENSURA

 

Censurar ou não censurar, eis a questão. Longe de terminar, essa discussão será, digamos, eterna. Estabelecer limites, a meu ver, seria o ideal. Se precisar, censura. Essa palavra arrepia muita gente na mídia, aqueles eternos defensores da bagunça, irresponsabilidade. Na verdade, há necessidade de mudança radical nesse segmento. Tudo pode para os poderosos, famosos, bonitas. Eles mandam, fazem o que querem, estão acima da lei, dos tribunais, dos juízes. Os exemplos estão aí, não precisamos citá-los.

O juiz Raphael Beddini embargou a trilogia “Cinqüenta tons”  obrigando a editora a plastificar todos os volumes das obras de E.L. James. E os “programas mais vigiados da televisão” continuam mostrando cenas eróticas, em TV aberta, com livre acesso a adolescentes, menores e crianças. Sexo sob edredons pode. Linguajar chulo, impróprio para menores, pode. Qual é a questão, então ? Vale para uns não vale para outros ? Ora, cumprir a lei nesse país teria evitado que 230 jovens e adolescentes tivessem perdido a vida numa boate, no Rio Grande do Sul. Sabemos que não é assim.

Recebi e-mail do Dr. Carlo A.C. de Oliveira, brasileiro, casado com uma professora americana, pai de uma menina de 3 anos, nascida em Albany, NY. Mora nos Estados há catorze anos. Formado pela Universidade de Mariland, com licença para trabalhar nos estados de Nova Iorque e Massachusetts. Dr. Carlo comentou sobre a posição do juiz de Macaé e sugeriu mais responsabilidade dos magistrados em relação ao que ele chama de liberdade de expressão. São dois países democráticos, mas as diferenças chegam a preocupar quem é brasileiro e mora na América. Veja o texto do Dr.Carlo.

“Sem que eu pedisse, fizeste-me a graça

de magnificar meu membro.

Sem que eu esperasse, ficaste de joelhos

em posição devota.

O que passou não e passado morto.

Para sempre e um dia

o pênis recolhe a piedade osculante de tua boca.

Hoje não estás nem sei onde estarás,

na total impossibilidade de gesto ou comunicação.

Não te vejo, não te escuto, não te aperto

mas a tua boca esta presente, adorando.

Adorando.

Nunca pensei ter entre as coxas um deus.”

O poema acima cujo titulo é “Sem que eu pedisse, fizeste-me a graça” esta contido no livro “O Amor Natural” de Carlos Drummond de Andrade.  Um dos maiores gênios da literatura brasileira e personagem obrigatório nas aulas de Literatura Brasileira.  Eu me lembro dos meus tempos de colégio quando o estudo de poemas com linguagem erótica geravam murmúrios e, às vezes, constrangimento entre nós alunos.  No entanto, professores, alunos e pais reconhecem a valor cultural e pedagógico desta arte. 

Hoje, como adulto, pai e advogado, me dou conta do privilegio de nós brasileiros vivermos em uma sociedade cujo  direito a livre expressão intelectual, artística, científica e de comunicação são direitos garantidos a todos cidadãos pelo Artigo 5 da nossa Constituição.  Sem esta garantia constitucional, nós brasileiros não teríamos acesso a arte de artistas como Carlos Drummond de Andrade, Fernando Pessoa ou Pablo Neruda, todos poetas cuja obra incluía linguagem eróticas e vulgares para os padrões da sociedade da época. 

Recentemente, li um artigo em um jornal de alta circulação nacional, dizendo que um juiz havia determinado o recolhimento dos livros  “Cinquenta tons de cinza”, “Cinquenta tons mais escuros” e “Cinquenta tons de liberdade”, da autora E. L. James, de livrarias no Rio de Janeiro. Segundo a ordem de serviço assinada por Raphael Baddini, da Segunda Vara de Família, da Infância, da Juventude e do Idoso, estas e outras publicações consideradas “impróprias” não podem ser expostas nos estabelecimentos sem lacre.  Ainda segundo Vossa Excelência, a ordem de recolhimento dos livros é baseada no Artigo 78 do Estatuto da Criança e da Adolescência (ECA), que diz que “revistas e publicações contendo material impróprio ou inadequado a crianças e adolescentes deverão ser comercializadas em embalagem lacrada, com a advertência de seu conteúdo”. 

Ao ler esta noticia, perguntei-me se o legislador de fato, ao codificar o Artigo 78 do ECA, teve como intenção proibir a circulação (sem lacre ou advertência) de obras literárias contento material “impróprio ou inadequado a crianças e adolescentes” ou se a proibição contida no Artigo 78 do ECA limita-se  publicações contendo fotos ou imagens gráficas consideradas impróprias a crianças e adolescentes.  

Se o Artigo 78 do ECA tem como objetivo lacrar toda obra literária contendo material impróprio ou inadequado a crianças e adolescentes, livrarias em todo o Brasil seriam obrigadas a lacrar obras de Carlos Drummond de Andrade, Fernando Pessoa e Pablo Neruda.  Assim como os poemas eróticos, as obras de E. L. James seriam lacradas por ter conteúdo erótico ainda que não tenha qualquer imagem.  

Por não acreditar que o legislador teve a intenção de restringir ou proibir circulação de obras literárias baseado no seu conteúdo, e sim, em proteger crianças e adolescentes da exposição gratuita a “imagens” gráficas e/ou eróticas em revistas e outras publicações, acredito que Vossa Excelência se equivocou em sua decisão. 

Contrário à interpretação de Vossa Excelência, o Artigo 78 do ECA tem como intenção a proteção a crianças e adolescentes da exposição gratuita de imagens gráficas e/ou eróticas.  Tal interpretação tem suporte no parágrafo único, artigo 78, do ECA, que diz ”As editoras cuidarão para que as capas que contenham mensagens pornográficas ou obscenas sejam protegidas com embalagem opaca.”  O legislador usou a palavra “capas” no artigo 78 do ECA justamente para identificar a origem do material a ser coberto caso as capas contenham material impróprias.   Qual seria a necessidade de o legislador exigir que a embalagem fosse “opaca” se a intenção do legislador fosse de proteger crianças e adolescentes do conteúdo da obra?  Será que o legislador teve como intenção obrigar a todos os bibliotecários ou vendedores de livros a ler cada publicação em seu estabelecimento afim de determinar que obras tem conteúdo impróprio para crianças e adolescentes?  O bom senso nos diz que não foi esta a intenção do nosso legislador.   

Ao exigir que as obras de E. L. James seja coberta por uma embalagem opaca por conter linguagem erótica, ainda que tais obras não tenham qualquer imagem erótica ou impróprias a crianças e adolescentes em sua capa ou em seu texto, Vossa Excelência interpretou o Artigo 78 do ECA de uma maneria que outros direitos constitucionais foram violados, por exemplo  o direito a livre “expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença,” (Art. 5, IX da Constituição Brasileira de 1988), e “livre manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo” sem que haja qualquer restrição, (Id., Art. 220). 

A decisão de Vossa Excelência de recolher exemplares das obras  “Cinquenta tons de cinza”, “Cinquenta tons mais escuros” e “Cinquenta tons de liberdade”, da autora E. L. James, de livrarias no Rio de Janeiro é arbitraria e sem suporte legal.  Se por ventura, a minha interpretação do ECA é incorreta, então livrarias e bibliotecas no Brasil afora terão que embalar obras de Carlos Drummond de Andrade, Fernando Pessoa, Pablo Neruda, dentre outros.

Carlo A. C. de Oliveira, Esq.

Martin, Shudt, Wallace, DiLorenzo & Johnson

Troy, New York.

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