DESCULPEM-NOS JEFFERSON

Desculpe-nos, Jefferson, estava procurando um motivo para entender a sua barracão no gol da seleção brasileira (inexplicável perante sua regularidade, em oito anos de Botafogo só deve ter falhado umas cinco vezes) quando abri a Revista O Globo de domingo. Ela traz  fotos de 31 adultos, 47 crianças, 4 colunistas e 6 garotas propagandas. Todos eram brancos. Apenas 3 negros saíram ao fundo na foto, acho que não deu tempo de retirá-los de lá. Se em 88 fotos os negros foram omitidos na principal revista de um dos mais importantes jornais do país, como Dunga poderia escalá-lo entre os 11 titulares se você é negro e vivemos debaixo do mais cínico racismo?

Desculpe-nos, Jefferson, pois passei o sábado no BarraShopping e, no maior centro de consumo do Rio, devo ter entrado em 6 lojas, passado diante das vitrines de umas 60 e cruzado com 260 visitantes. Só encontrei pessoas da sua cor como seguranças, atendentes no Bob´s e manobristas. Como, então, num estádio de futebol, onde vocês carregam a maca, são massagistas, bilheteiros, assistem de costas às partidas com cães a tiracolo, conseguiria defender aquela meta em paz, com a memória do Barbosa ali viva, entranhada junto ao nosso preconceito? Tão impregnado, é capaz de esquecer e perdoar os 7 gols tomados por Julio César contra a Alemanha, quatro deles defensáveis, mas o tiro cruzado do Gighia, em 50, jamais! A memória do torcedor é mais fraca apenas que a razão que sobrou do seu fanatismo. È fraca, é branca, mas como deve lhe doer.

Desculpe-nos, Jefferson, já presenciei meus amigos negros no Fluminense, como Marco Antonio, Oliveira, Toninho e Cafuringa, passarem por constrangimentos assim. Nos anos 70, após conquistarmos a Copa Brasil, empolgado no vestiário após o título, o presidente Francisco Laporte prometeu doar um título de sócio proprietário a cada campeão. Um deles, ao meu lado, exultou: “Finalmente vou entrar naquela piscina!”. Segunda-feira, já em seu gabinete sem emoções, um assessor apontou-lhe o estatuto: proibido a entrada  de negros no quadro social. Alguém achou um paliativo: entregar uma cota  simbolicamente  ao capitão. Era Denílson, o Rei Zulu. Novas reuniões foram realizadas, até que o goleiro Félix, branco e tricampeão do mundo, levou o título sozinho e foi mergulhar na piscina em nome de todos nós.

Desculpe-nos, Jefferson, seu treinador Dunga é, na literatura infantil, irmão de 6 anões brancos e ainda foi adotado por uma fada. Branca como a neve. Na vida real, foi criado no sul, jogando no Inter, e  a figura alva do Hallisson é mais comum em seu mundo, nada diferente do que encontramos nas páginas daquela revista. Em todo o BarraShopping. Millor Fernandes disse um dia que “no Brasil não há racismo porque o negro conhece o seu lugar!”. Até vê-lo sentado naquele banco contra a Venezuela (até o adversário escolheram a dedo, para a injustiça passar despercebida perante um time fraquíssimo), não sabia interpretar sua frase. Tinha até medo dela cair no ENEM. Agora, não tiro de letra. O Brasil acaba de se assumir como um país racista quando permite que escalem um goleiro menos qualificado, porém branco, em seu lugar. Sabe que nenhuma daquelas louras que apresentam o  esporte dia seguinte comentaram sobre a sua barração?

Desculpe-nos, Jefferson, mas o que a Princesa Isabel no ato da abolição fez foi atender os apelos da Inglaterra, que promovia uma Revolução Industrial e queria tirá-los da cozinha, dos campos, para enfiá-los nas fábricas. Seu ato nada teve de justo ou humanitário. Deixou-os até hoje por aqui semi livres, expulsando-os para as favelas, vedando seu acesso a uma escola de qualidade e, agora, impedindo de assumir a titularidade de uma posição que fez por merecer mais do que ninguém. Segundo um dos nossos historiadores “de maneira geral o ex-escravo, mutilado e violentado por três séculos de escravidão, não possuía hábitos de vida familiar e, praticamente, a idéia de acumulação de riqueza era-lhe totalmente estranha. Seu baixo nível de renda, seu entorpecimento, dificultaram-lhe a assimilação. Nessas condições, não poderia a antiga população escrava deixar de representar um papel puramente passivo nas transformações econômicas e sociais surgidas no começo do Brasil republicano”.

Como Joaquim Barbosa, imagino o que deve ter passado para chegar aonde chegou. Superar as barreiras que superou. Ao final, pelo menos lhe deixo uma esperança:  as escolas de samba já começaram a ensaiar no Rio. Vem o carnaval por aí, e segundo Martinho da Vila, vocês “terão sonhos de rei, de pirata e jardineiros, com fantasias já usadas na avenida, que são cortinas, que são bandeiras, pra tudo se acabar na quarta-feira!”

José Roberto Padilha é jornalista, ex-atleta do Fluminense, Flamengo, Santa Cruz e Americano, entre outros.

 

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