CARTA SAUDOSA A TELÊ SANTANA

Como vai, Mestre? Nós, teus ex-jogadores, o mundo do futebol, andamos sentindo muito a sua falta, especialmente em episódios como do ultimo domingo, durante a partida de futebol entre duas das suas maiores paixões: o Fluminense FC, clube que o revelou e o conduziu à seleção brasileira como jogador, e o São Paulo FC, que lhe consagrou como treinador e o levou a dirigir nossa seleção. Depois que você partiu muita coisa mudou, e para pior: os empresários tomaram conta dos clubes que eram dirigidos pelo amor dos seus beneméritos e abnegados, e os jogadores, que permaneciam décadas defendendo sua agremiação, como o Raí, Silas e Muller, são trocados a cada temporada e, hoje, beijam a logo fria do patrocinador no lugar do escudo sagrado que deveriam aprender a cultuar.

Atletas enraizados com seus clubes, como Rogério Ceni, que deveriam ser regra, são uma honrosa exceção.Na política, deixaram de eleger representantes sérios e dignos, como Mário Covas, Leonel Brizola e Franco Montoro para brincar com o voto, mandar para Brasília para discutir questões fundamentais, como as reformas políticas e da previdência, cidadãos despreparados como Tiririca, um grande comediante que poderia continuar prestando seu melhor papel a sociedade num palco ou picadeiro. Jamais no Congresso Nacional. Mas o pior mesmo surgiu nas arquibancadas, um sentimento nojento, antiético, que denigre e joga por terra todos os valores com que lutaste em vida, dentro e fora de campo: a  triste opção pela entrega de um resultado.

Aquela faixa erguida pela torcida do São Paulo (ENTREGA) foi o maior ataque sofrido pelo nosso esporte nos últimos anos. Maior que o doping do Jobson, que pode ser curado através de tratamento e remédios, e muito pior do que os votos negociados pelos delegados da FIFA, que foram afastados e punidos. O sentimento de corrupção, de negociar objetivos até então sagrados,como a busca das vitórias nas competições, se impregnado no esporte, enraizado pelo país na formação das divisões de base de milhares de atletas, que assistiram a subida impune daquela placa, pode jogar por terra toda a paixão e o fascínio provocado pelo futebol no país que melhor lhe cultua e reverencia.

Com você, Mestre, dirigindo o time do São Paulo no domingo, que decidia não o título pro clube, mas a permanência ou não da honra e da ética como valores sagrados do esporte, duvido que você deixaria teu principal zagueiro sair de cena com uma simples pancada na coxa. Teria que sair sim, mas gritando na maca. Com você na boca do túnel, nenhum atleta deixaria seu time com nove em campo por chilique, precipitação ou irresponsabilidade. Alguém já disse um dia que podemos perder tudo na vida, menos nossa capacidade de indignação perante as injustiças – e ninguém na transmissão daquela partida, das cabines ou vestiários, dentro mesmo do campo, foi capaz de se revoltar perante tal acinte.

Nem que fosse para respeitar sua memória, ainda viva dentro daquelas cores tricolores, fazer valer sua história que ali deixou seu lastro, como homem e treinador, que jamais compactuou com a desonra. Ninguém se indignou com a saída de uma fundamental peça numa defesa que até poderia tomar os gols do Conca e do Fred, mas jamais da passividade. Da permissividade. Com você entre nós, Mestre, não estaríamos perdendo tempo discutindo o regulamento por pontos corridos, mas valores culturais de uma nação que, na busca emergente pelo capital, pelo progresso, está permitindo escorrer pelo ralo sentimentos e princípios que a tornaram referência: a correção, a índole, a alegria da diversidade que naturalmente irradiava e distribuía felicidade com sua marca registrada.

O futebol, nós sabemos, afinal, fomos treinador por você, é apenas um espelho da sociedade. Mas quanto é doloroso saber que as pequenas concessões, aquelas onde estão impregnadas as maiores das corrupções, começam a deixar o cotidiano do Congresso Nacional, do Senado e das escusas salas do Banco Pan Americano, para alcançar os últimos degraus das nossas arquibancadas. Em seu nome e em sua memória, permita-nos, como discípulos, a duas rodadas do fim do campeonato brasileiro, suplicar a seus descendentes, especialmente Luis Felipe Scolari e seus soldados da luta e da vez: não deixem manchar ainda mais a imagem  do futebol, sua grandeza conquistada por tantos, com tanta luta.

Deixem que o imponderável, a fórmula da caixinha de surpresas, e não a imoralidade, continuem a decidir as partidas. Afinal, o que valerá, para nós tricolores cariocas, um título manchado pela desonra e incentivado por aqueles que mesmo sabendo que estão envenenando a sociedade, se prestam a abrir suas faixas, e o gás de sua cozinha, para nocautear um simples vizinho-torcedor contrário e revelar o quanto pequeno ainda nos portamos diante das pequenas adversidades.

Zé Roberto

Jornalista e ex-ponta esquerda do Fluminense FC

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