DESCULPE, ÂNGELO

Bom dia, Ângelo, e nos desculpe. Certas vezes o jogador de futebol, de voleibol ou basquete, seus companheiros de ginástica artística, o Arthur, o Felipe e o Henrique, por estar muito tempo concentrado num CT ou excursionando, escorregam nas brincadeiras. E são indelicados, como foram com você. Mas não o fazem por mal, acredite. É por excesso de horas de convívio em que mal cabem assuntos, livros e estudos para perceber que tudo o que estão passando no esporte, quem sabe até pela fama, vai os atirar no mesmo saco social em que é acondicionado o povo brasileiro. Este saco ainda é novo em relação a todo o mundo, tem menos de seis séculos, mas não é branco como o que sai pela porta da frente dos supermercados. Nem preto como os que os deixam pelos fundos, carregando os restos de comida pelas mãos dos garis. Nosso saco é multicolorido e só o tempo nos fará respeitar o seu interior. Amar e  se orgulhar da nossa diversidade. Não confrontar suas cores com piadas.

Sou de família branca, mas quando cheguei ao Fluminense, aos 16 anos para prestar vestibular de jogador de futebol, percebi que o ouro ali era negro. Pouco adiantou estudar noções de física no Colégio Entre-Rios, era Carlos Alberto Pintinho, que vinha com primário inacabado do morro do Borel que descobria, em um lançamento, o tempo e a velocidade correta a ser usada pela bola. Morávamos na Urca, Rua Octávio Corrêa, 45, e entrávamos para treinar pela porta da frente do clube, que ficava na Rua Álvaro Chaves. Até que um dia perceberam que era do futebol, e não do vôlei do Bial, dos saltos ornamentais da Juliana Veloso, nem do basquete do  que tantos negros se misturavam a elite associada. E trataram de abrir uma porta nos fundos, pela Rua Pinheiro Machado, para o futebol entrar junto aos funcionários do clube. Era pequena e tinha um livro de ponto. A portaria social clareou, mas quem atraia os refletores da Manchete Esportiva, de todos os jornais pelo país e elevava as glórias do clube era o capitão Denílson, o Rei Zulu. Flávio, o Minuano, artilheiro nacional. Marco Antonio, representante do clube que desfilou em carro aberto no tricampeonato mundial.

Muito breve, tenho certeza, vocês, negros, não precisarão mais de cotas para ser um Joaquim Barbosa. Nem sofrer preconceitos, como a pena mágica de Lima Barreto, que se fosse branco seria respeitado em sua época e, hoje, cultuado como Machado de Assis. Não mais entrarão pela porta dos fundos dos seus clubes e serão menos seguranças, e mais consumidores no Barra Shopping. Menos motoristas e mais passageiros das madames que por ali desembarcam. Mas para isto será preciso que todos, Arthur, Felipe e Henrique inclusive, reconheçam que naqueles navios negreiros, que desembarcaram em porto seguro pela porta dos fundos, vieram as cores da caixinha de gente que nos tornaram hábeis, invejados e diferentes. Especialmente no esporte. Pode acreditar, Ângelo, sua cútis, longe de ser a cor do deboche, de um saco de lixo que sai pelos fundos, é a tonalidade maior que exibimos pela porta da frente. A parte mais bonita que habita em cada um de nós, brasileiros, e que há de brilhar ano que vem, com um ouro amarelo no peito, de quem hoje pedimos, humildemente, desculpas.

José Roberto Padilha é jornalista, ex-atleta do Fluminense, Flamengo, Santa Cruz e Americano, entre outros.

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