SINTÉTICAS GERAÇÕES

Pior que o baixo nível do estadual carioca, do placar de 0x0 entre Vasco e Flamengo nas semifinais, só mesmo a propaganda da Brahma no intervalo das partidas. Mesmo sabendo que Pelé, Tostão, Garrincha, Zico, Gerson, Romário e Neymar começaram jogando bola em campos de terra batida, ela está “presenteando” os sagrados redutos naturais das comunidades periféricas, poupados pela especulação imobiliária, substituindo-os por gramados sintéticos. A peça publicitária, bonita na sua concepção ao pintar traves reluzentes de ferro no lugar das de bambus, estender o tapete sintético sobre o sagrado piso da diversidade explícita, na verdade é um falso brilhante que irá sufocar, no nascedouro, nossa maior matéria prima de exportação: o jogador de futebol. Para ali nascer um gênio da bola, o garoto, cujo Bolsa família não permitiu ganhar um Playstation, reúne seu amigos e descobre na periferia um terreno baldio. Cortam bambus, fincam traves e pegam uma bola, de plástico, meia ou de couro que parece naquele piso ter vida própria (e não tapetes sintéticos a lhe reprisar destinos previsíveis)  e travam com ela um duelo de destreza que dura toda sua infância. Com os pés descalços, sem aqueles alambrados verdes fincados nas laterais, vão buscar a bola morro abaixo para depois recolocá-la em seu laboratório natural. Até perceber todos os seus truques. Dominar, nos pés, coxas, peito ou cabeça, toda a sua magia. Ali percebem, como em nenhum outro lugar do planeta, o pulo do gato. Não o sabor de uma loura gelada.

O que a Brahma está fazendo com nosso futebol é calçar luvas nos alunos de uma escola de piano, para subtrair-lhes a extensão dos acordes de uma sinfonia. Já imaginou,  luvas em escolinhas de basquete, para roubar do Marcelinho o tato que calcula peso e distancia, em milésimos de segundo, o segredo dos 3 pontos? Teria o futebol brasileiro o direito de se meter na sua consagrada fórmula, plantar o seu malte, colher o seu lúpulo, dizer com que cristalina água será servida e depois acender o refletor para servir uma cerveja azedada na tulipa? Será que ela continuaria a ser a nº 1 se Wanderely Luxemburgo, Tite, Muricy Ramalho escalassem seus produtos e treinassem sua  produção?

A Brahma, depois que virou multinacional e exportável, se associou a FIFA. Aquela mesma entidade que padronizou os estádios de futebol com o intuito de perpetuar a mesmice. O lance comum, não a caneta inusitada. O chute reto, não o voleio enviesado. O previsível cruzamento escocês sobre a área, não a bicicleta inesperada do Leônidas. O elástico de Roberto Rivelino. Se você abrir os olhos rapidamente em nossas arenas, ex-estádios, não saberás dizer se está em Munich, Roma, Barcelona ou Paris. Primeiro, investiram nos cartolas e empreiteiros, que acabaram no lava-jato, agora vão cobrir os pés dos garotos com chuteiras Adidas, trocar o piso onde a diversidade encontrou abrigo para deixá-los fora da linha da pobreza. E dar ao mundo a maior matéria prima que o futebol já concebeu. Em suma: uma cerveja se mostra importante quando despejada na taça-tulipa após um título alcançado. Mas azeda quando surge nos intervalos das partidas a cobrir  palcos naturais com a frieza de um gramado sintético. Dela, grama sintética, diante de sua beleza estética, será erguida uma geração sadia, sem calos, mas tão previsível com a bola nos pés quanto o futebol inglês. Quando sua limitada seleção entra em campo, durante 90 minutos vai desaparecendo no imaginário dos torcedores o  sonho de um novo drible. Uma nova jogada inventada pela diversidade descalçada. Só daí, nas comemorações, seria alcançado o prazer de uma Brahma. Bem gelada.

José Roberto Padilha é jornalista, ex-atleta do Fluminense, Flamengo, Santa Cruz e Americano, entre outros.

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