INTELIGÊNCIA NATURAL

Mané Garrincha, além de ter sido o gênio das pernas tortas, o maior ponta direita do futebol mundial, foi, pela sua inocência, vítima de muitas histórias engraçadas, ironias imortalizadas pelos nossos cronistas esportivos. Em uma delas, após adquirir um radio transistor de ultima geração durante o mundial de 1958, disputado na Suécia, tratou logo de arrumar um comprador entre os jogadores. “Mas porque, Garrincha, você quer se livrar de um rádio tão bonito?” “Cara, você nem imagina a língua que ele fala. Se não estou entendendo nada no quarto, imagine quando chegar ao Brasil?”.

Ao mesmo tempo, a União Soviética dominava a inteligência espacial, e teve a capacidade, e a ousadia, de enviar ao espaço um satélite, o Sputinik 1, o primeiro da história da humanidade. Foi no dia 4/10/57. Era uma esfera de aproximadamente 50cm e pesava 83,6 kg, e apenas transmitia sinais, em sua órbita, que podiam ser sintonizados por qualquer radio amador pelo mundo. Devia ser um sinal desde que Garrincha captou e não entendeu nada. Mas quando Brasil x Rússia se enfrentaram um ano depois, em 15/06/58, a inteligência soviética, levada às táticas exaustivamente treinadas para parar o ataque brasileiro, foram atiradas ao chão quando o nosso camisa 7, sem ter completado o ensino primário, driblou toda a zaga vermelha, aos 14 minutos do primeiro tempo, e desferiu um tiro tão forte de perna direita que tremeu a trave direita. E o Kremlin junto. A esfera que conduzia, uma bola de futebol, pesava apenas 450 gramas e tinha 68 cm, mas o estrago que causou chamou a atenção do mundo. Eles queriam a lua, nós a hegemonia do futebol mundial.

O placar da partida foi 0x0, mas o espaço, e os gramados, nunca mais foram os mesmos dali pra frente. Tal giro, em órbitas da inteligência e do conhecimento,  nos reporta ao Fla x Flu de domingo.  E nos dá outro exemplo que por mais que você se gradue, volte de Stanford com um diploma debaixo do braço, dificilmente você seria capaz de, em um segundo, encontrar repostas tão precisas para as equações inusitadas que o esporte coloca diante de si.  Aos 9 minutos do segundo tempo, Pará, que o nome já diz o quanto viajou e de que escola pública, infelizmente, passou perto porque tinha que jogar bola no contra turno, enfiou um passe milimétrico para Alecsandro nas costas dos zagueiros tricolores. O centro avante rubro-negro recebeu a bola pela direita e, num segundo, percebeu estar sem o ângulo desejado para a conclusão. E levanta a cabeça procurando o Marcelo Cirino na área. Com Marlon já nos seus calcanhares, refuga o passe por ver que seu companheiro está um passo à frente. Impedido. E, no outro milésimo que lhe resta, percebe o goleiro tricolor saindo para interceptar sua intenção. E, sem qualquer outro tempo do mundo, sem esquadro, Google ou bússola às mãos, dá um biquinho na bola e, no contrapé do goleiro tricolor, alinha a bola no fundo da rede. Respeito. Admiração. Reconhecimento.

É só isto que a sociedade deve a estes gênios do esporte, que sacrificaram sua adolescência treinando a exaustão, fazendo testes em clubes, jogando bola pela manhã, à tarde e à noite. Não deu tempo para estudar a fundo. De se formarem em física para colocar um Sputinik no ar ou entender a língua que suas ondas irradiavam pelo mundo. Mas são capazes de nos oferecer obras de arte, pinceladas ao vivo, fruto de uma inteligência que não foi afetada pela cultura dos livros não alcançada.  Ser culto é uma questão de estudo. Ser gênio, inteligente, é um dom de Deus. Que Ele os converse vestindo sempre uma camisa amarela, atuando por aqui aos domingos, dando recitais em Barcelona, no sábado, onde estiver rolando um Sputinik de couro, sintético, pelos gramados naturais do mundo afora.

José Roberto Padilha é jornalista, ex-atleta do Fluminense, Flamengo, Santa Cruz e Americano, entre outros.

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