O legado

 

Dentre alguns ensinamentos, repasses de lendas, histórias da Branca de Neve, concepções religiosas e bom dia para as pessoas, com licença para outras, procuramos deixar aos nossos filhos, no país do futebol, um legado da bola. Desde o primeiro presente, uma camisa do Fred, até o primeiro jogo, que tinha de ser do Fluminense, de preferência contra o Horizonte para não arriscar se teria ou não uma festa no fim, forçamos para que eles adotem a nossa herança esportiva e dêem continuidade à tricolorida espécie. Democrata que sou, comprei a primeira camisa para a Roberta, que seus amigos nos colégio trataram de transformá-la em rubro-negra. Repassei meu manto à Priscila, que gentilmente o manteve intocado na gaveta.  Convenceram-na que a  tal espécie precisava evoluir. E foi com a irmã pro meio daquela massa ensandecida. Tentei o Bruno, mas meu jogo de despedida, com a presença inspirada de Junior, Adílio, Andrade e Zico, enfiando um baile de 9×1 no Estádio Odair Gama sobre meus amigos ao lado do Rivelino, o convenceu a crescer ao lado daquela mística adotada pelas irmãs. Restou-me o Guilherme, e ele, aos 8 anos, idade considerada ideal para a adoção de uma paixão esportiva, foi acompanhar o pai como treinador no estadual de 95. E o time treinado por mim, o Entrerriense FC, apanhou tanto do Botafogo de Túlio, Sergio Manoel, Gottardo e Cia, o encantou tanto que, além de ser campeão brasileiro daquele ano, acabou roubando-me a ultima esperança de repassar e perpetuar  minha saga tricolor.

Meu avô, Diógenes Padilha, foi mais criativo. Em jogos do Fluminense me colocava ao seu lado para ouvir os jogos, eu tinha os 8 anos e não havia televisão, era no rádio que o nosso imaginário percorria os gramados do Maracanã. Quando o Fluminense atacava, aumentava o som do rádio, e eu guardava o nome do Escurinho, Valdo, Joaquinzinho e Castilho. Quando o adversário pegava na bola, abaixa o som e contava uma historinha. Fui crescendo assim, ouvindo jogos de um time só, o máximo permitido foi escutar o nome do goleiro adversário a ser batido. E Marcial e Ubirajara  eram nomes de inimigo. Quanto aos meus netos, pai e avôs tricolores e mãe rubro-negra, depois de muita luta, intervenção das tias, pressão dos tios, reunião com psicólogos, chegaram a um acordo para manter a sagrada união em família: para o Eduardo, a camisa do Cruzeiro. A outra, destinada ao Felipe, foi a do Brasil. Melhor assim.

Escrevo tudo isto porque ontem, finalzinho da tarde, lembrei-me do Yago. Que menino esperto, bonito e eletrizado o neto do Betinho Barbosa e da Regina, filho da Aline e do Filipe. Quando o Vasco fez o seu gol de penalty, faltando menos de 15 minutos para acabar a decisão, pensei em encontrar sua irradiante alegria na carreata do título. E imaginei que, finalmente, depois de viver uma saga de vice, só assistir ecoar um título de segunda, seus pais e avós iriam levá-lo para uma festa onde seriam atores principais, de bandeiras erguidas, não mais secundários protagonistas, a manter aquela camisa bonita outra vez escondida na gaveta. Aí vem aquela bola cruzada na área e… O futebol é assim mesmo. Um esporte mágico, inexplicável, cujo senso de justiça desconhecemos, apenas xingamos seus eventuais sentenciadores  de apito na boca. Um gol impedido às vezes rouba mais que um título, tira mais que o pirulito da boca de um menino. Às vezes ele pode tirar o fascínio de um ser em formação se tornar mais uma exceção vascaína.  Afinal, que graça teria neste país se todos caminhassem em uma só direção, votassem na mesma pessoa,  ocupassem todo o anel externo da vida da gente sem a menor diferença  diante da rotina de torcer por um clube só?

José Roberto Padilha é jornalista, ex-atleta do Fluminense, Flamengo, Santa Cruz e Americano, entre outros.

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