O OUTRO ROUBO DA TAÇA

Na decisão da Taça Guanabara de 1976, 164 mil pessoas comparecem ao Maracanã, para ver Vasco x Flamengo. Após o empate de 1×1 no tempo normal (gols de Roberto Dinamite e Geraldo) a decisão foi para os pênaltis. Com 4×3 para o Flamengo (apenas Abel Braga havia desperdiçado o seu, para o Vasco) faltavam apenas Zico e Roberto Dinamite baterem os seus. O estádio já era uma festa antecipada do título rubro-negro quando Zico se aproximou da marca fatal. 

Eu e Rondinelli deitamos lado a lado no gramado, meio rezando, meio escolhendo o lado em que correríamos para comemorar o título. O diálogo que se seguiu entre nós era a cara e a voz da nossa inexperiência com o mundo do futebol: o Deus da Raça disse com a cabeça enfiada na grama: “Zé, vamos botar a mão em cem milhas (que era o bicho pela conquista)!”. E eu respondi: “Amanhã mesmo troco meu Puma Spyder pelo GTB! Que lado da geral você vai correr pra comemorar?”. E ele completou: “Pro lado da geral que você escolher?” 

Nem precisei responder, entre o grito esperado de gol, houve um silencio que emudeceu até os vascaínos. Quando levantamos a cabeça, a bola do título não estava mais nas redes, e sim nas mãos do Mazzaropi, goleiro do Vasco, que defendera o penalty de Zico. Não colocamos a mão nas cem milhas, não troquei de carro, mas levamos pra vida uma forte lembrança do que representou uma Taça Guanabara na vida da gente. Uma emoção que superou até a tristeza de uma derrota daquele tamanho.

Guardamos como estas, preciosas histórias do futebol não apenas na memória, mas nos pôsteres, faixas, medalhas das competições que disputamos. E quando assistimos uma delas desprestigiada como a Taça GB 2014, que levou ao Maracanã nem 10% da decisão de 76 (12.648 torcedores) nos sentimos diminuídos como desportistas do mesmo jeito que um jornalista, formado na Gama Filho, se sente quando sua universidade é fechada. Um orgulho inversamente proporcional daqueles que se formaram na USP e ficam sabendo que sua faculdade é, ainda hoje, a única brasileira respeitada internacionalmente.

Existem várias maneiras de roubar uma taça da gente. Uma delas, assaltar a sede da CBF, na Rua da Alfândega e levar a Jules Rimet para o desmanche, transformando em ouro derretido o símbolo maior de todas as nossas conquistas no futebol, que foi o tricampeonato mundial. Outra é fazer o que a FERJ está fazendo com um dos maiores símbolos que nós, ex-jogadores, temos guardado em nossa história, que é a Taça Guanabara, que conquistei um ano depois com um gol de falta do Rivelino. 

O que era um orgulho de todo atleta profissional, tê-la conquistado e garantido pelo menos o vice-campeonato estadual para o seu clube e seu currículo, se transformou num espetáculo final sem emoções, sem público, sem respeito ao passado de quem a conquistou. Nem os jogadores do Flamengo a tiveram em mãos para realizar algo tão bacana na carreira da gente, mas por ser a FERJ dirigida por quem nunca deu um pontapé na bola ou estudado a história do futebol para respeitar, como explicar para eles, cartolas de plantão como Rubens Lopes, o que significou uma volta olímpica ou uma cabeça entristecida enterrada na grama?

Acho que todo mundo deveria estudar a história do que meio em que vive ou preside. A Dilma não pode se dar o direito de ainda pensar que Cabral descobriu o país que governa por ter aqui chegado, se afastado das costas da África, enfrentando calmarias. Todo mundo já sabe que Portugal dominava os mares no século XV através da Escola de Sagres, suas naus, cartas gráficas e marés, do jeito que um filho seu domina, hoje, os gramados do mundo. A FERJ não poderia desconhecer o que significou uma Taça Guanabara na vida de todo ex-atleta, na história do futebol carioca, se alcançasse, ou respeitasse, cada pingo do suor que deixamos em campo para tentar dignificá-las. Transformá-las num objeto único de orgulho e conquista.

José Roberto Padilha é jornalista, ex-atleta do Fluminense, Flamengo, Santa Cruz e Americano, entre outros.

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